Escuta, mau cavaleiro,
sofreia a rédea um instante;
não fatigues as ilhargas
de teu pobre Rocinante.
Olha, falso, que não foges
de serpente fera e má,
porém de uma cordeirinha
que de ovelha longe está.
Tu zombaste, monstro horrendo,
da donzela mais formosa
que Diana viu em seus montes
e Vênus na selva umbrosa.
Vireno atroz, Eneias fugitivo, Barrabás te acompanhe, de olho vivo!
Tu levas – furto impiedoso! –
nessas garras encerrada
a alma inteira de uma humilde,
pobre, terna enamorada.
Levas três toucas de enfeite
e umas ligas, que adornavam
pernas tão alvas e lisas
que ao mármore se igualavam.
E levas dois mil suspiros
tão ardentes que, parece,
queimariam três mil Troias,
se três mil Troias houvesse.
Vireno atroz, Eneias fugitivo, Barrabás te acompanhe, de olho vivo!
De teu escudeiro Sancho
se endureça o peito tanto
que não saia Dulcineia
nunca mais de seu encanto.
Da culpa de que és culpado
tenha triste a pena e as dores,
que aqui muitas vezes pagam
justos pelos pecadores.
Que as mais finas aventuras
se te volvam em tristezas,
em sonhos teus passatempos,
em desdéns tuas firmezas.
Vireno atroz, Eneias fugitivo, Barrabás te acompanhe, de olho vivo!
De Sevilha até Marchema,
desde Loja até Granada,
de Londres à Inglaterra
tenha de falso nomeada.
Quando baralho jogares
fujam-te reis e valetes,
às mãos não te cheguem ases
nem vejas damas ou setes.
Que sangres, quando te cortes
os calos dos calcanhares
e não saiam as raízes
quando os dentes arrancares.
Vireno atroz, Eneias fugitivo, Barrabás te acompanhe, de olho vivo!
Miguel de Cervantes