Archive for the ‘Adão Ventura’ Category

meu pai (i)

14/12/2020

meu pai está velho
e cansado
em Serro ou em Soweto.

meu pai está velho e cansado
ainda que faça sol
em Johannesburgo.

mas,
as suas mãos
ainda não estão
tão trêmulas
a ponto de errar o corpo
de um Mr. Vorster.

Adão Ventura

agora

18/10/2019

É hora
de amolar a foice
e cortar o pescoço do cão.

— Não deixar que ele rosne
nos quintais
da África.

É hora
de sair do gueto/eito
senzala
e vir para a sala
— nosso lugar é junto ao Sol.

Adão Ventura

encantamento

20/09/2019

Você agora
é arco-íris
sol
de Três Barras
cristal
de São Gonçalo do Rio das Pedras
– Um caminhão transporta estrelas
do Pico do Itambé
– Um raio corta de fora a fora
os céus do Serro

Adão Ventura

comensais

22/04/2019

A minha pele negra
servida em fatias
em luxuosas mesas de jacarandá,
a senhores de punhos rendados
há 500 anos.

Adão Ventura

limite

12/02/2018

e quando a palavra
apodrece
num corredor
de sílabas ininteligíveis.

e quando a palavra
mofa
num canto-cárcere
do cansaço diário.

e quanto a palavra
assume o fosco
ou o incolor da hipocrisia.

e quando a palavra
é fuga
em sua própria armadilha.

e quando a palavra
é furada
em sua própria efígie.

a palavra
sem vestimenta,
nua,
desincorporada.

Adão Ventura

zumbi

17/11/2017

Eu-Zumbi
Rei de Palmares
tenho terreiros e tambores
e danço a dança do Sol.

Eu-Zumbi enfrento o vento
que ainda tarda
dessas cartas de alforria.

Eu-Zumbi jogo por terra
a caneta de ouro
de todas as Leis-Áureas.

Eu-Zumbi
Rei de Palmares
Tenho terreiros
e tambores
e danço a dança do Sol.

Adão Ventura

negro forro

15/05/2017

minha carta de alforria
não me deu fazendas,
nem dinheiro no banco,
nem bigodes retorcidos.

minha carta de alforria
costurou meus passos
aos corredores da noite
de minha pele.

Adão Ventura

natal ii

23/12/2016

Um menino lerdo
num lençol de embira
mesmo qu’uma fonte
de estimada ira.
um menino lama
num anzol que fira
alguma parte e corpo
e alma de safira.
um menino cápsula
de tesoura e crina
– ritual de crisma
sem fé ou parafina.
um menino-corpo
de machado e chão
a arrastar cueiros
de chistes e trovão.

Adão Ventura

alfabetização

08/01/2016

Papai
levava tempo
para redigir uma carta.

Já mamãe,
Sebastiana de José Teodoro,
teve a emoção de assinar seu
 nome completo
já quase aos setenta anos.

Adão Ventura

das biografias

11/05/2015

em negro
teceram-me a pele.
enormes correntes
amarram-me ao tronco
de uma Nova África.

carrego comigo
a sombra de longos muros
tentando impedir
que meus pés
cheguem ao final
dos caminhos.

mas o meu sangue
está cada vez mais forte,
tão forte quanto as imensas pedras
que os meus avós carregaram
para edificar os palácios dos reis .

Adão Ventura