O chope não me traz o desejado esquecimento
Os insetos morrem de encontro à lâmpada
Ou se açoitam no sofrimento destas rosas secas.
Vem do Montanhês este ar de farra oculta,
Bem mineira, e um trombone, atravessando
A pensão “Wankie”, próxima à Empresa Funerária,
Acorda os mortos desolados na Rua Varginha.
Uma lua muito calma desce do Rola-Moça
E se deita, magoada, sobre os jardins da Praça,
O telhado do Mercado Novo, o bairro da Lagoinha.
Tísicos bóiam que nem defuntos na solidão
Dos Guaicurus. O próprio noturno de Belo Horizonte
Tem lá suas virtudes: nas pensões mais imorais
Há sempre um Cristo manso falando à Samaritana.
As mulheres do Norte de Minas, uma de Guanhães,
Duas de Grão-Mogol e três da cidade do Serro
Mandam ao ar esta canção intolerável
Que aborrece até mesmo o poeta Evágrio.
Pobre Evágrio, perdido na estação de Austin.
Triste e duro como uma garrafa sobre a mesa.
Entanto nada indica haja tiros, facadas, brigas
De amantes na Rua São Paulo, calma e sem epístolas.
O Arrudas desce tranquilo, grosso e pesado,
Carregando cervejas, fetos guardados, rótulos de
Farmácia, águas tristes refletindo estrelas.
Tudo, ao depois, continuará irremediavelmente
Como no princípio. Somente, ao longe,
Na solidão de um poste, num fim de rua,
O vento agita o capote do guarda.
Dantas Mota
noturno de belo horizonte
17/05/2024inútil
15/05/2024Se fosses estrela
eu seria esse bocado de céu
que te sustém.
Se fosses alga
eu seria essa vagarosa vaga
te embalando vagarosamente.
Se fosses um vago som
ou tom no fim da tarde
eu seria esse não imaginado vento
te desencadeando.
Mas, de que vale pensar nisso
se te busco e não sei quem és
se me esperas e não sabes quem sou.
Olga Savary
a aurora e os leopardos
13/05/2024São mais violentos que os leopardos
nossos recônditos desejos.
Flor de brasão dos reis lombardos
é a aurora em cândidos adejos.
E eis sufocados pelos nardos
da aurora os monstros dos desejos.
Venceu a aurora os leopardos.
Há um alarido de festejos.
Bandos brilhantes de moscardos
cintilam mais que os azulejos.
Gorgeiam pássaros galhardos.
E em suntuosíssimos cortejos
voam pavões nos ares pardos
lançando esplêndidos lampejos.
Sosígenes Costa
instante sem forma
10/05/2024Este indefectível cigarro,
Esta noite e estas cantigas,
Tantas vezes viajei
Pelo mesmo papel, só os rabiscos
Indicam as viagens interrompidas.
Entanto, Maria,
Nenhum pensamento impuro,
Atravessando os limites de minh’alma,
Me obriga a rezar ou a dormir.
E como me sinto leve, leve,
Fatigado e triste
Diante da crueldade da beleza!
A poesia não tem tempo:
Chega de súbito e sem aviso.
Inútil persegui-la.
Sequer esquecê-la.
Em vilegiatura, vaga por campos
E coisas incorpóreas.
Mas ela me comunica tal poder!
Tal força de integração e renúncia!
Tanto que, se um Anjo,
Desses que andam distraídos, agora,
Pela face mais triste da Terra,
Me apanhasse de súbito,
Pelos caminhos esquecidos,
De mãos dadas comigo caminharia,
Suave e frio como um Paraíso.
Dantas Mota
tranquilidade na tarde
08/05/2024Ah, derramar-me líquida sobre o mar
– ser onda indefinidamente –
esperar pela primeira estrela
e dela ser apenas
espelho.
Olga Savary
tornou-se o por-do-sol um nobre entre os rapazes
06/05/2024Queima sândalo e incenso o poente amarelo
perfumando a vereda, encantando o caminho.
Anda a tristeza ao longe a tocar violoncelo.
A saudade no ocaso é uma rosa de espinho.
Tudo ó doce e esplendente e mais triste e mais belo
e tem ares de sonho e cercou-se de arminho.
Encanto! E eis que já sou o dono de um castelo
de coral com portões de pedra cor de vinho.
Entre os tanques dos reis, o meu tanque é profundo.
Entre os ases da flora, os meus lírios lilases.
Meus pavões cor-de-rosa os únicos do mundo.
E assim sou castelão e a vida fez-se oásis
pelo simples poder, ó pôr-do-sol fecundo,
pelo simples poder das sugestões que trazes.
Sosígenes Costa
dos acontecimentos em trânsito
03/05/2024Não te direi de outros reinos, amiga,
Nem de outros países conservados mansos.
Não te direi do desprestígio das estrelas,
Muito menos dos lábios gastos de Ju-li-e-ta…
Afinal, quanto tempo perdi em Ju-li-e-ta?
Suas pernas eram de mármore? De vidro?
Talvez de carne, talvez de febre: brancas e frias,
Nelas se consumiu esta tristeza viúva.
E tuas mãos não falam de outros sóis,
De outro tempo, de outras infâncias,
Que tudo resultou inútil: – a saudade,
A velhice, a experiência e a temperança.
Elas podem apontar a Rússia,
Como se apontassem o meu pobre Cristo:
Varejar almas sugadas no tempo fecundo
Seria afugentar anjos e atear rebeliões.
Quando regressares dos edifícios,
Em que nem o trabalho delicadeza possui,
As ruas não terão noites e nem manhãs:
Somente as lâmpadas agitam sombras e sonos
E nem rezas. E nem beijas a tua mulher.
E nem vês a identidade de teus filhos.
E nem conta dás de tua filha donzela.
Sequer, verificas como é triste o teu pão.
Dantas Mota
escrito em um guardanapo
01/05/2024Levanto minha taça, camaradas,
e antes de mais nada peço que me perdoem
por atravessar sem permissão e sem compostura
as portas da emoção:
nosso irmão de tão longe país
e nossa filha das entranhas, criança de nossos olhos,
fundam sua nobre casa sobre uma firme pedra.
Filhos do povo, comunistas os dois,
escutaram
a fulminante voz do coração.
A alegria é também revolucionária, camaradas,
como o trabalho e a paz
Bodas de flores vermelhas,
brindemos por eles!
Muito amor um ao outro
Sempre fiéis e mutuamente apoiados
nos darão filhos lindos
(seja isso dito com o perdão)
que iluminarão os primeiros de maio
E é que a partir de agora
cada um é camarada
multiplicado por dois
Isto é como se disséssemos
o lado prático do romance.
Comamos e bebamos, camaradas.
Roque Dalton
vivem em nós inúmeros
29/04/2024Vivem em nós inúmeros;
Se penso ou sinto, ignoro
Quem é que pensa ou sente.
Sou somente o lugar
Onde se sente ou pensa.
Tenho mais almas que uma.
Há mais eus do que eu mesmo.
Existo todavia
Indiferente a todos.
Faço-os calar: eu falo.
Os impulsos cruzados
Do que sinto ou não sinto
Disputam em quem sou.
Ignoro-os. Nada ditam
A quem me sei: eu escrevo.
Ricardo Reis
eu não fui sempre assim
26/04/2024Eu não fui sempre assim. Eu fiquei assim
no dia em que encontrei no meu pratinho
de arroz-doce
um pelo do bigode de Giordano Bruno.
António Manoel Pires Cabral